Henrique Gouveia e Melo, almirante de quatro estrelas, ex-chefe do Estado-Maior da Armada e coordenador da vacinação nacional contra a covid-19, acaba de oficializar a sua candidatura à Presidência da República. É o primeiro nome assumido com reais possibilidades de vitória nas eleições marcadas para 25 de janeiro de 2026. Figura séria, tecnicamente respeitada, tornou-se popular pela sua liderança durante a pandemia. Para muitos, representa competência, sobriedade e serviço público — valores raros em tempos de descrença política.
Mas a ascensão de um militar ao topo do sistema político, mesmo por vias democráticas, carrega inevitavelmente um sinal de alarme. Não pelo indivíduo, mas pelo que ele representa. A história ensina que as democracias maduras não se medem apenas pela sua capacidade de eleger livremente, mas sobretudo pela vigilância sobre os símbolos que elegem. E a farda, mesmo despida de armas, continua a ser um desses símbolos. Carrega consigo a cultura da obediência, da hierarquia e do monopólio da força — valores que podem enriquecer a vida institucional, mas também sufocá-la, se colocados acima da pluralidade e do dissenso.
O próprio apelo popular à candidatura de Gouveia e Melo diz tanto sobre ele quanto sobre o estado da democracia portuguesa. Num tempo de fragmentação partidária, saturação do discurso político e erosão das lideranças tradicionais, o povo anseia por estabilidade. E é neste vácuo de confiança que a figura do militar reaparece, não como ameaça direta, mas como solução simbólica. Ainda que sem treino político, ainda que sem experiência parlamentar, o militar é desejado por parecer imune ao jogo e ao ruído.
É legítimo. Mas é também sintomático. O recurso a figuras exteriores ao sistema — e, neste caso, exteriores à tradição civil — revela um certo esgotamento da política tal como ela tem sido praticada. E esse esgotamento, se não for interpretado com maturidade, pode abrir espaço a soluções redentoras que prometem eficiência à custa da complexidade democrática. Gouveia e Melo, ao que tudo indica, não representa isso. Mas o contexto em que a sua candidatura floresce merece atenção.
Há algo de ambivalente nesta candidatura. Ela pode ser o sinal de uma democracia exigente e cansada, que pede mais do que ideologia: pede resultados. Mas pode também ser um sintoma de que a linguagem política perdeu a sua capacidade de traduzir o mundo — e que, diante disso, a sociedade prefere quem a organize, em vez de quem a represente.